Uma questão de encontro

4 de setembro de 2005
Por: Viviane Mosé

Para o filósofo holandês Spinoza, Deus não é uma entidade ou força original, o princípio criador de tudo o que existe. Na verdade, tudo o que existe é Deus. Todas as coisas e criaturas formam uma grande unidade universal, infinita e eterna – um todo. Spinoza também chamou esse todo – Deus – de natureza, ou substância.

Se tudo faz parte de uma grande unidade, não existe diferença entre criador e criatura. Tudo o que existe no mundo e todas as pessoas são manifestações de Deus.

Pense numa bateria de escola de samba, que une os diferentes instrumentos num som único, em uma só pulsação. Deus, ou natureza, é a unidade que se manifesta em todas as diferentes coisas que existem no mundo.

"A escola é um corpo, a gente tem que ter um coração, uma batida só", explica mestre Paulinho.

Mestre Paulinho, à frente da bateria da Beija-Flor de Nilópolis, é o líder que tem a tarefa de permitir essa unidade.

Tem que estar focado, em atenção na avenida. Fica todo mundo imbuído num só objetivo, que é a nota máxima. Isso só acontece quando todos estão com o pensamento único.

Se tudo é uma unidade e não existe diferença entre criador e criatura, então também não existe o bem e o mal. Ninguém é simplesmente bom ou mau. Para Spinoza, o que existe são apenas bons e maus encontros.

Mas o que é um bom encontro?

México, 1970: A Copa que reuniu Carlos Alberto, Rivelino, Gerson, Tostão, Jairzinho e o rei Pelé foi um encontro histórico de gênios do futebol.

Foi uma seleção que marcou. Realmente, é considerada até hoje uma das maiores seleções que o mundo já viu. Foi fantástico.

— Zagallo, você com toda essa experiência que você tem de vencedor, o que fez a Copa de 1970 adquirir aquela junção tão perfeita? Porque eu acho que perfeito é um nome que a gente pode usar para aquele grupo.

— Houve um tempo que hoje já não existe mais. Nós trabalhamos durante três, quatro meses antes de uma Copa do Mundo. E esse tempo ia unindo cada vez mais os jogadores, existia uma intimidade —, diz Zagallo.

— Foi uma seleção que não foi um ou dois jogadores que decidiram. Foi um grupo. O Paulo, o movimento que ele fazia eu já sabia. O Jairzinho tinha um movimento, o Pelé tinha o dele, o Tostão, o Gerson. A gente já sabia, a gente se conhecia muito —, afirma Rivelino.

— O Gerson era o meu jogador, como se fosse um técnico dentro de campo. Porque ele sabia o que eu queria. Então, eu tinha uma maneira, às vezes, de fazer um, dois e três… Então, o gesto que eu fazia, ele entendia o que eu queria dentro de campo —, conta Zagallo.

— Se um time dá certo, é um corpo pulsando, com líder, com as individualidades. Para o Gerson jogar, ele não pode ser dividido em corpo e alma, não é, Gerson?

— Você é todo pressão. É todo sentido. Você joga com tudo —, diz Gerson.

Spinoza dizia que é da natureza de todos os corpos, incluindo o humano, afetar e ser afetado por outros corpos. A vida é um permanente jogo de encontros. Se, nesse jogo, um corpo combina com o nosso, as forças se somam e acontece um aumento da nossa potência, que para Spinoza é alegria. Alegria se traduz em ação. Para o filósofo, este é o bom encontro.

Na Copa de 1970, os talentos individuais se encaixaram, se complementaram, formando uma unidade.

Mas nem sempre essa reunião dá certo.

— Você pode ter grandes jogadores, juntar esses jogadores e não formar um time, não é isso?

— Pode. Não adianta botar só craque jogando com posições indefinidas, que não chega a lugar nenhum —, aponta Zagallo.

Assim como um time pode não funcionar em campo, uma bateria pode perder o ritmo na avenida, a sincronia entre os instrumentos. "E isso é fatal para a escola de samba. Porque a bateria desandando, automaticamente serão oito quesitos que serão prejudicados pela nossa falta de atenção", explica mestre Paulinho.

Para Spinoza, quando os corpos não compõem uma unidade, não combinam, uma força desintegra a outra. Mais ou menos como uma bateria desencontrada. Isso leva a uma diminuição da potência, a um enfraquecimento. É o mau encontro.

O mau encontro é quando as forças se juntam, mas uma impede a ação da outra, uma deteriora a força da outra. Esse enfraquecimento gera tristeza, que se manifesta como falta de ação, passividade.

Será que você já não se sentiu preso a um relacionamento que o enfraquece e diminui, que de certa forma mina sua força? Isso é um mau encontro.

Por outro lado, o bom encontro traz um transbordamento de vida e potência, como na Copa de 1970. Uma grande união, que também foi feita de pequenos bons encontros, como o de Zagallo e Gerson.

— Foi um bom encontro, não tenha dúvida.

— Porque eu sou fã dele, nós somos amigos dentro e fora do campo. Eu não podia ser dirigido por outro. Um trouxe o complemento para o outro —, retruca Gerson.

— O gol faz parte da nossa alegria. Sem o gol, a gente não vive —, filosofa Zagallo.

Toda ação, para Spinoza, é alegre – porque manifesta o que ele chama de Deus, ou natureza. Deus é ação. O que nasceu do bom encontro entre os ídolos da Copa de 1970 foi uma força tão poderosa que mobilizou um país.

— Noventa milhões torcendo a nosso favor —, lembra Zagallo.

— É indescritível —, diz Gerson.

— Foi uma copa especial, né? —, fala Rivelino.

Já reparou que, muitas vezes, você fica alegre sem nenhuma razão? A alegria não precisa de motivos, como uma Copa do Mundo. Ela é simplesmente a expressão do prazer de estar vivo.

— Deu tudo certo, e nós conquistamos o mundo —, relembra Zagallo.

Fonte: http://fantastico.globo.com/Jornalismo/Fantastico/0,,AA1028557-4686,00.html

Comentários

Unknown disse…
postei um texto sobre amizade. parece que eu estava adivinhando que você ia postar esse aqui. mesmo tema, bom encontro! :D

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